Crítica: A Fogueira das Validades, entre o cínico e o espetáculo










Avaliação: ★★★

A pretensão de A Fogueira das Vaidades em dissecar as contradições da América dos anos 1980 esbarra na própria natureza do sistema que pretende criticar. Como esperar que um filme bancado por cifras milionárias e estrelado por ícones de Beverly Hills transcenda a superficialidade? A indústria, comandada por seus power brokers, pode realmente se autorretratar sem cair em autocongratulação ou paradoxo?  

Mas há, é verdade, um certo fascínio no acaso profético da obra: quatro anos antes do circo midiático do caso O.J. Simpson, o filme já esboçava a espetacularização do judiciário como entretenimento. Contudo, tal coincidência não redime sua narrativa caótica. Brian De Palma, usualmente um cirurgião da imagem, parece perdido entre o desejo de adaptar fielmente o romance e a pressão por um espetáculo palatável. O resultado é uma colisão de tons: o escárnio social dissolve-se em pantomima, e a denúncia política desemboca em caricatura.  

Ainda assim, há algo de perverso na forma como o filme abraça seu próprio cinismo. Em uma era marcada pelo maniqueísmo narrativo, herança do blockbuster pós-anos 1980, sua recusa em oferecer heróis ou redenção soa quase transgressora. Até o discurso final no tribunal, interpretado por Morgan Freeman, ganha camadas involuntárias: sua presença, carregada de um simbolismo que hoje transcende a tela, expõe a contradição entre a mensagem supostamente progressista e o voyeurismo reacionário que a sustenta.  

Nada escapa ileso, nem mesmo o filme. Como observa o personagem de Bruce Willis, numa fala que ecoa como metalinguagem cruel: "Quando você trabalha em um puteiro, só há uma escolha: ser a melhor puta". A Fogueira das Vaidades parece ter levado o conselho ao pé da letra, entregando-se à degradação como espetáculo. Se há mérito nisso, reside justamente em sua falta de pudor: ao fracassar como sátira, o longa torna-se, involuntariamente, um sintoma da doença que pretendia diagnosticar.  

Neste sentido, a obra (falha, excessiva, desequilibrada) talvez mereça um lugar no cânone justamente por sua imperfeição. Ela expõe, sem filtro, os limites da crítica dentro do sistema que a produz. E, nessa exposição, revela mais sobre Hollywood do que qualquer discurso bem-comportado jamais ousaria.

A Fogueira das Vaidades (The Bonfire of the Vanities – EUA, 1990) 

Direção: Brian De Palma  

Roteiro: Michael Cristofer (baseado no romance de Tom Wolfe)  

Elenco: Tom Hanks, Bruce Willis, Melanie Griffith, Morgan Freeman, Kim Cattrall, Saul Rubinek, John Hancock, Kevin Dunn, F. Murray Abraham, Kirsten Dunst

Duração: 125 min

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