Crítica: O Quarto ao Lado, Almodóvar e uma reflexão mórbida
Avaliação: Bom
Pedro Almodóvar, cineasta que há décadas explora os corpos, os prazeres e as relações humanas em sua filmografia, parece entrar em O Quarto ao Lado em um momento de reflexão mais sombria. Algo que já mostrava vestígios no ótimo Dor e Glória, mas que aqui ganha contornos mais profundos. Se antes o diretor espanhol celebrava a sensualidade e a vitalidade, aqui ele confronta a morte, a velhice e a fragilidade física com uma morbidez quase crua.
A trama acompanha Martha (Tilda Swinton) em um momento de crise existencial, onde seu passado e seu presente se entrelaçam de forma desigual. Isso porque a personagem busca se resolver consigo mesma enquanto luta contra um câncer terminal. Nesse processo, ela se reaproxima da amiga Ingrid (Julianne Moore), que a ajuda a cumprir suas últimas metas.
O filme é repleto de ideias potentes e momentos de beleza visual, mas sofre de uma estrutura narrativa dispersa, como se Almodóvar hesitasse em escolher o fio condutor de sua história. A mesma hesitação de sua protagonista diante de um destino fatal. O primeiro ato constrói um contexto familiar sólido, enquanto o segundo introduz elementos quase jornalísticos e o terceiro mergulha de vez na relação entre as duas amizades centrais. Essa transição abrupta entre temas faz com que o filme pareça uma colagem de momentos reflexivos, mas desconectados.
O personagem de Damian (John Torturro), por exemplo, traz um discurso sobre crise climática que, embora ressoe com a temática de término, parece um acréscimo isolado, não integrado ao todo. Quase como se mastigasse a proposta. Repare, não se trata de uma obra de narrativa capenga ou datada, mas a sensação é de que montagem não consegue conectar suas sequências para que conversem realmente entre si. O trabalho acaba por ser disperso, ainda que agrade. No meio dessa colagem, há uma abordagem complexa sobre como a paz de espírito interfere na paz corporal e vice versa. Como se a vida fosse uma eterna luta entre os dois lados. Em determinado momento, a protagonista conta uma história de um colega jornalista que só encontrava sossego cobrindo guerras ao fazer sexo entre tarefas, o corpo aliviando a mente. Além disso, mesmo adepta das artes e da promiscuidade, Martha não consegue mais se reconectar com seus prazeres depois de tantos tratamentos químicos, como se o antes libertador corpo humano tenha se tornado sua prisão.
Essa proposta mais mórbida também pode ser reparada visualmente. O Quarto ao Lado mais contido que os trabalhos anteriores de Almodóvar. A paleta de cores, embora ainda marcada por tons primários, está menos vibrante, como se refletisse a desolação das personagens. Ou como uma forma do espanhol tomasse para si características de outras produções nova-iorquinas e colocasse seu toque ali. O diretor ainda mantém seu talento para capturar a química entre atores: os planos conjuntos das duas protagonistas reforçam sua cumplicidade. Juliane Moore e Tilda Swinton entregam uma bela troca entre a vivacidade e a melancolia, sustentadas pela direção que sabe extrair magnetismo de seus intérpretes.
No fim, O Quarto ao Lado é uma obra agradável, mas incompleta. As reflexões sobre mortalidade e corporeidade são tocantes, e há cenas que ecoam na memória. No entanto, a sensação é de um Almodóvar dividido entre múltiplas inquietações, algumas interessantes, outras mal amarradas. O filme se torna um trabalho menor na filmografia do diretor, mas ainda assim essencial para quem deseja acompanhar sua jornada artística rumo às sombras.
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