Crítica: O Enigma de Outro Mundo e a paranoia como horror essencial
Avaliação: Obra-prima
O Enigma de Outro Mundo (1982), frequentemente reduzido a um marco do body horror pelos efeitos práticos de Rob Bottin (a carne que se abre, os dentes que brotam dos corpos), é, na verdade, uma armadilha meticulosa para a razão. John Carpenter não se contenta em assombrar os olhos; ele corrói a certeza. O verdadeiro monstro não está nas vísceras expostas, ainda que choquem, mas nos "buracos" da narrativa. Está nos momentos que Carpenter se recusa a mostrar, as elipses que transformam o espectador em cúmplice da paranoia.
A genialidade do filme reside no que ele omite. Não vemos Norris sendo assimilado. Não sabemos o que acontece com Fuchs na escuridão. A câmera, como os personagens, vira as costas no momento crucial, e essa recusa em "mostrar" é mais perturbadora que qualquer efeito. Carpenter joga com a linguagem do cinema como a coisa joga com a carne: deformando, sugerindo, nunca confirmando. Cada corte seco, cada sombra mal resolvida, cada reação ambígua dos personagens (o olhar de Palmer, o silêncio de Windows) alimenta a mesma pergunta: quando exatamente a infecção começou? A resposta é um acúmulo perturbador de possibilidades, todas plausíveis, nenhuma verificável.
O clímax não está na explosão da base, mas no "falso alívio" do final. MacReady e Childs, os últimos homens vivos, riem diante do abismo. O plano próximo da respiração congelante, a garrafa que pode ou não estar cheia de gasolina, são pistas deliberadamente inconclusivas. Carpenter não nos nega um final feliz; ele nega qualquer final. O horror não é que a coisa sobreviveu ou que foi derrotada, mas o fato que nunca saberemos.
Enquanto a crítica mainstream celebra o gore (e Bottin merece todos os elogios) e um cinema de efeitos práticos que não volta mais, penso que ao mesmo tempo isso acabava ofuscando a genialidade de Carpenter em construir atmosfera. A paleta da obra é uma crônica do frio e do isolamento: brancos sujos, azuis metálicos e negros que sugam a luz como a Antártida suga o calor. Dean Cundey, diretor de fotografia, trabalha com uma iluminação que não clareia, mas sugere – holofotes que cortam a escuridão como facas, deixando cantos intocados, enquanto o vento uivante e a trilha sonora pulsante de Ennio Morricone (um click-click-click de paranoia mecânica) transformam a base em um organismo claustrofóbico. As paredes apertadas, os corredores estreitos e os espaços mal iluminados não são apenas cenário; são personagens.
A câmera, muitas vezes estática ou com movimentos lentos, observa como um predador à espreita, reforçando a sensação de que algo está sempre fora de quadro, à espreita, algo já visto brilhantemente em Halloween. Quando o plano se abre, é para nos lembrar da vastidão hostil do gelo – um contraste cruel com a sufocante desconfiança interna. A fotografia não revela ameaças, apenas sombra de ameaças, e é nesse jogo de presenças invisíveis que a paranoia se enraíza. Cada frame é um convite à dúvida.
O terror revoltado de O Enigma de Outro Mundo está na sua estrutura narrativa vazada, que nos força a duvidar até das nossas próprias deduções. É um filme que não termina quando os créditos rolam. Ele se replica na mente do espectador, como um vírus. Como diria Rivette, "o cinema é a arte do invisível". Carpenter, aqui,faz o público ver monstros onde talvez não existam. Ou existam demais.
Título Original: The Thing
Direção: John Carpenter
Roteiro: Bill Lancaster (baseado no conto *Who Goes There?* de John W. Campbell Jr.)
Produção: Stuart Cohen, David Foster & Lawrence Turman
Fotografia: Dean Cundey
Direção de Arte: John J. Lloyd
Efeitos Especiais: Rob Bottin (com contribuição de Stan Winston)
Trilha Sonora: Ennio Morricone (com temas adicionais compostos por John Carpenter)
Edição: Todd Ramsay
Duração: 109 minutos
País: Estados Unidos
Gênero: Horror, Ficção Científica
Elenco Principal: Kurt Russell, Wilford Brimley, Keith David, Donald Moffat, Richard Dysart, T.K. Carter, David Clennon, Richard Masur
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